terça-feira, 15 de setembro de 2009

Debatendo metodologia

Os debates entre economistas heterodoxos e ortodoxos no Brasil tem focado em (1) resultados e (2) enfoques metodológicos. Infelizmente, quando um dos tópicos é debatido, existe confusão com o outro, e o debate não sai do lugar. Por isso, esse texto foca no debate metodológico entre ortodoxos e heterodoxos. Os motivos são, além de procurar evitar confusão, o fato de que debater resultados sem debater os meios e métodos é mais religioso que científico (não que isso tenha problemas, porém, eu não tenho formação de catequisador*). Adicionalmente, porque acredito que categorizar entre heterodoxos e ortodoxos com base em conclusões é muito pouco produtivo.

O debate metodológico parece ter evoluído no sentido da melhor forma de buscar pela verdade. Ortodoxos defendem que a refutabilidade das teses e o uso do método dedutivo de forma evolucionária são as únicas formas logicamente válidas de se obter resultados. Por outro lado, me parece que heterodoxos defendem que o conjunto dos argumentos verdadeiros é mais amplo que o conjunto dos argumentos lógicos, o que os levaria a procurar maior pluralidade de métodos, que desse conta da amplitude dos argumentos verdadeiros.

Agora, podemos notar que tem um passo filosófico-lógico faltando nessa demanda por pluralidade de métodos . É verdade que queremos chegar no grupo dos argumentos verdadeiros e que não podemos mostrar que todos os argumentos verdadeiros são logicamente demonstráveis. Isso deveria nos levar à maior pluralidade de métodos, usando outros que não a lógica pura. Porém, isso não quer dizer que devemos aceitar qualquer método em nome da pluralidade: antes de usar um método qualquer, devemos mostrar que ele nos leva a argumentos verdadeiros (ou chega próximo disso).

Nessa linha de descobrir um bom método que nos aproxime dos argumentos verdadeiros, podemos partir do ponto de que queremos usar o máximo de informação que tivermos disponível para descobrir a verdade. As consequências dessa suposição são:
(i) Esse requerimento nos leva a demandar que novas teses científicas sejam consistentes com teses antigas ainda não refutadas (para usar a informação obtida com a não refutação das teses antigas na nova tese). Um exemplo desse tipo de requerimento em economia é a demanda por microfundamentação de modelos macroeconômicos.
(ii) Ainda mais, vem dessa suposição o desejo de querermos usar constantes testes empíricos para os nossos modelos (para adquirir nova informação sobre a validade deles).
(iii) Por fim, a refutabilidade das teses propostas é imprescindível para podermos adquirir informação sobre as nossas teses (acontecimentos não mudam as nossas crenças em teses impossíveis de serem negadas) e para podermos desenvolver novas teses no futuro.
Em outras palavras, o uso do máximo de informação possível coincide com o método proposto pelos ortodoxos (tanto na refutabilidade, quanto no caráter evolucionário da ciência).

Porém, a demanda por teses consistentes com teses anteriores faz o nosso conhecimento de agora ser altamente dependente da tese inicial. Se esta estiver errada, ficaremos errados por um bom tempo. A refutabilidade nos serve de seguro, mas com toda certeza, não é um seguro completo. Dessa discussão, podemos concluir que usar toda a informação disponível provavelmente não nos levará à verdade. Apesar de tudo isso, isso é, por definição, o melhor que temos a fazer.

Ou seja, apesar de discordar parcialmente da justificativa original dada, o lado dos ortodoxos econômicos me parece estar certo no debate apresentado acima. Para heterodoxos se acertarem metodologicamente sem tornar-se ortodoxos (para mim, a diferença entre os grupos é somente metodológica), seria necessário propor um critério que tivesse melhor performance (em termos de proximidade da verdade) que "usar toda a informação disponível". Quão impossível isso parece ser?

*apesar de apelidos...

9 comentários:

  1. Michel,

    O que você quer dizer com método dedutivo de forma evolucionária?

    Particularmente, eu acredito que a discordância sobre conclusões e disputas sobre hegemonia dentro da profissão embalam parte das discordâncias metodológicas. Mas elas existem sim e eu acho que elas se centram em 2 pontos: i) equilíbrio; ii) racionalidade.

    Discordo de você quanto a ausência de refutabilidade nas análises econômicas não "ortodoxas" (entre aspas porque não gosto do termo ortodoxia - denota algum tipo de radicalismo).

    Você pode argumentar (com razão) que a "ortodoxia" emprega em média testes empíricos melhores. Mas isso não implica que as hipóteses não "ortodoxas" não sejam refutáveis. Apenas que os testes empíricos médios podem ser mais fracos. E de qualquer forma é uma verdade na profissão como um todo que a análise empírica (econometria ou simulação) cresceu de importância nos últimos vinte anos. Aliás é engraçado perceber que uma das críticas que os não "ortodoxos" fazem aos "ortodoxos" é a não refutabilidade das teses "ortodoxas".

    Em suma, apesar de metodologicamente não ter problema algum com a ortodoxia (pelo contrário, simpatizo com ela!) acho que sua análise é um pouco injusta com o "outro lado" e não considera um "vírus" importante que contamina boa parte do debate metodológico: a ideologia.

    Abs

    Arthur

    PS: Sobre coisas evolucionárias. Dá uma olhada em coisas "agent-based modelling". Isso é modelagem evolucionária levada ao seu limite. Aliás a FEA/USP tem um grupo de estudos de coisas evolucionárias que chama Complex. Também dá uma olhada no texto clássico do Veblen: "Why is economics not an evolutionary science?". O artigo é de 1928, mas você encontra no JSTOR.

    ResponderExcluir
  2. Michel, acho que sua premissa está incorreta. Você diz que para os heterodoxos (def.: aqueles que aceitam mais de um método como válido (by Sheila Down)), a lógica é insuficiente para chegar à verdade.

    Se é verdade que muitos podem apelar para isso, a base filosófica do que se faz em economia não-mainstream tem outro fundamento: a inexistência de experimento crucial. Por favor leia Quine (1950), é brilhante e absolutamente embaraçoso para o pensamento positivista.

    Segundo Quine, formalizando algo que já aparecia apenas superficialmente em Popper, quando um pesquisador falha em refutar uma proposição, não é possível dicernir se nisso se constitui uma confirmação parcial da proposição em si ou falha do método utilizado pelo cientista. O exemplo do telescópio é preciso: se um observador não detecta luas em Plutão é porque elas não existem ou porque seu equipamento não é apropriado para observá-las?

    A importância desta observação é que não existe distinção fundamental entre proposições objetivas e lógicas: não existe caráter especial das proposições metodológicas, e uma proposição objetiva refutada sempre pode ser reorganizada através do reposicionamento de uma hipótese metodológica.

    A partir daí a filosofia da ciência caminha no sentido de que não podemos apreender plenamente a verdade por qualquer meio que seja (o que não quer dizer que ela não exista), e que portanto não existe posição privilegiada de nenhum método.

    Só para exemplificar, não há substância em afirmar que microfundamentos são critério para separar boa ciência de má ciência ou senso comum (ver Jardim, Lichand e Gala, forthcoming no Estudos Econômicos de Out/Nov/Dez 2009).

    Abs

    ResponderExcluir
  3. Arthur, eu talvez tenha me expressado mal usando um termo que fico cunhado já no debate, que é entre ortodoxos vs. heterodoxos. Quando eu faço essa distinção, na minha cabeça, não é a distinção UFRJ vs. PUC de ideologia (de um achar que política monetária é contra-cíclica e outro achar que só devemos baixar juros independente da situação). Na verdade, se alguém na UFRJ me mostrar um modelo consistente com o conhecimento microeconômico que temos que demonstre que devemos baixar juros indepedente da situação, e mais, que esse modelo tem apoio empírico forte, perfeito, não tenho nada para ir contra.

    Outra coisa é: vamos negar todos os estudos feitos com expectativas racionais porque não acreditamos nelas e vamos recomeçar da década de 30, junto com Keynes. Esse procedimento, pra mim, metodologicamente, é estúpido, não porque os caras depois do Keynes estão certos, mas porque, inevitavelmente, os caras de macroeconomia depois do Keynes trouxeram informações novas para o mundo (seja em termos de possibilidades teóricas, ou em termos de estudos empíricos). Esquecê-los é negar informação, é não usar toda a informação disponível para aprender. O que não quer dizer que você não possa criar um modelo convincente sem expectativas racionais (se você ler um trabalho do Akerlof falando sobre irracionalidade e macroeconomia, você se convence de que essa é uma possibilidade teórica legal de se considerar...dizer que ela será empiricamente relevante para política monetária no final são outros 500...não sei se as hipóteses do Akerlof são relevantes em termos de resultados de política monetária).

    ResponderExcluir
  4. Lichand, com relação à inexistência do experimento crucial...eis o que acho: não nego que ele não exista, exatamente como você argumentou. O que não quer dizer que experimentos não cruciais não sejam informativos.

    Deixa eu colocar em um exemplo: sabemos a expectativa de y não condicional. Vamos dizer que temos uma teoria que fala sobre E[y|x,z] (se não sair os símbolos, a expectativa de y dado x e z). Vamos dizer que z é não observável/não foi considerado pelo cientista que desenvolveu o teste. Aprender sobre E[y|x] é um experimento não crucial para a nossa teoria. Ainda assim, é informativo para a nossa teoria (apesar de pouco informativo) aprender sobre E[y|x], principalmente dado o nosso conhecimento inicial.

    Concordo, muitas hipóteses metodológicas são indistinguíveis de hipóteses lógicas, porém, exatamente pelo motivo que eu citei, as proposições objetivas tem um valor adicional sobre outras metodologias (porque, mesmo que possamos reformular a hipótese/teste em termos de metodologia, o teste sem a reformulação continua informativo para a tese com reformulação). Concordo que não existe garantia nenhuma que chegaremos na verdade, exatamente como eu coloquei no texto, o que não quer dizer que não exista um melhor que possamos fazer. Tu concorda comigo (você já estudou isso mais que eu)?

    Arthur, uma resposta que eu esqueci de te dar, mas que eu acho que complementa a resposta ao Lichand, é que, pra começar, muitas vezes o Popper é lido como: "podemos refutar ou não uma tese", quando a realidade é mais "acreditamos mais ou menos na tese/com mais ou menos probabilidade na veracidade dela".

    Daí, o segundo ponto do Popper vem com relação ao método dedutivo vs. indutivo, mas esse é um debate que eu não acredito muito, porque mesmo que formulemos os nossos estudos de forma dedutiva, existe sempre uma hipótese de validação da indutividade, que são as hipóteses estatísticas (amostra representativa, etc.).

    Mas por fim, com relação à forma evolucionária, o que eu quis dizer é que, exatamente por seguir o "acreditamos mais ou menos na tese", a melhor forma de atualizar as nossas crenças é (i) adquirimos informação nova (ii) isso se adiciona à informação adquirida previamente. Isso está em contra-ponto ao que é o método indutivo tradicional: observamos um caso particular (tipo, só existem cisnes brancos), e o aceitamos como um caso geral. No momento que observamos um caso particular diferente dos previamente observados (um cisne preto), mudamos todo o nosso sistema de crenças, e passamos a acreditar em um novo caso geral (podem existir cisnes brancos ou pretos).

    Abs.

    ResponderExcluir
  5. Michel,

    1) Você escreveu que a distinção que você faz entre escolas de pensamento não é ideológica. Mas não seriam suas colocações sobre as divergências entre o pensamento da PUC e da UFRJ já carregadas de julgamentos ideológicos? Acho que a diferença ideológica exacerba e estimula a disputa metodológica.

    2) Quanto a necessidade de microfundamentos, o Guilherme escreveu muito bem (aliás, parabéns pelo artigo!). Eu particularmente acho eles extremamente úteis. Mas acredito que limitar o diálogo científico à classe dos modelos que usam microfundamentos (ou que usam qualquer outro método) é limitar brutalmente o espaço de aprendizado da profissão.

    Vou dar um exemplo. Existem muitos insights interessantes para a nossa profissão que não surgiram em modelos microfundamentados. Mas eles só existem e são reconhecidos pela profissão porque algum economista rompeu a fronteira do método e levou a sério um trabalho que não incluía um modelo microfundamentado. Não fosse isso, continuaríamos sem esses insights, i.e., seríamos mais burros. A medida que cai a nossa capacidade de levar a sério argumentos gerados em frameworks metodológicos não convencionais pode reduzir a capacidade da ciência econômica avançar.

    3) Acho que você subestima fortemente a heterodoxia. Claro que tem gente que tem devoção quase religiosa a alguns textos e argumentos muitas vezes ultrapassados, anacrônicos, etc. Mas isso existem nos dois lados. Dizer que os bons heterodoxos querem jogar fora o que foi escrito nos últimos 70 anos é forte. Na maioria eles querem mesmo é abrir o escopo da profissão tanto em termos de método quanto em termos de espectro de conclusões.

    4) Acho que entendi seu ponto sobre ciência evolucionária. Para mim economia evolucionária dizia respeito a incorporação de processos de adaptação e seleção aos modelos econômicos. Aliás, essa é uma fronteira interessante do pensamento econômico explorada apenas por alguns.

    Abs

    ResponderExcluir
  6. Arthur,

    Concordo com o seu ponto (1). Agora, como eu disse, eu não me importo que a conclusão seja diferente da tradicional, desde que ela seja bem justificada. Como eu coloquei antes, o Akerlof chega à conclusões fora do normal, mas justificando bem. Por outro lado, muito da produção heterodoxa no Brasil é mal justificada filosoficamente (o método dela é de ignorar muita produção acadêmica feita nos EUA por um motivo ideológico). É por isso que essa produção heterodoxa é ignorada pelos ortodoxos no Brasil. Acho que isso também responde à (3). Deixa eu colocar em outros termos: o texto ta falando mal da postura de muitos heterodoxos brasileiros (ou pelo menos, daqueles que aparecem mais, tipo Sicsú, Pochmann), e da postura do Acemoglu de ignorar as possibilidades levantadas pelo Glaeser et al. por motivos questionáveis (o que não quer dizer que eu ache os trabalhos do Acemoglu ruins...e também o que não quer dizer que eu ache os trabalhos do Sicsú/Pochmann bons...são debates diferentes nesse sentido os debates de conclusão vs. debates de filosofia da ciência).

    Com relação à (2), vamos lembrar que os avanços que foram feitos com métodos pouco convencionais que você citou (e.g., Keynes) não são inconsistentes com microfundamentos. Pelo contrário, muita gente passou muito tempo pra demonstrar que as idéias do Keynes são consistentes com microfundamentos. O que eu quis dizer no blog é que a demanda por microfundamentos é um caso particular da demanda por consistência com conhecimento já produzido. O que não quer dizer que você deva sempre colocar no seu modelo um cara maximizando utilidade. Só quer dizer que você não pode supor que um agente poupa algo positivo e só consome a renda corrente (tipo o Oreiro).

    Com relação a (4), acho que as coisas de jogos evolucionários são bem interessantes. Agora, tem alguns pontos que, pelo menos pra mim, tornam complicados usa-los pra fazer teoria aplicada: em geral, eles tem uma questão dinâmica muito importante que, muitas vezes, nós não sabemos traduzir bem em termos da questão aplicada. Mas, naturalmente, isso varia de aplicação para aplicação. De repente, quando eu tiver mais maduro em produção teórica...eu posto alguma coisa sobre o tema...

    Abs

    ResponderExcluir
  7. achei que a sua resposta foi bem mais para o Arthur do que para mim... um elemento central do seu discurso, ao clamar para que qualquer nova produção científica seja consistente com o que se produziu até aqui, é a crença de que estamos nos aproximando cada vez mais de uma suposta verdade objetiva.

    Meu comentário anterior já descarta a base para crermos que estamos progredindo sempre. A ciência caminha em torno de consensos, e a História do Pensamento já nos mostra que esses consensos podem muitas vezes se justapor de forma bastante 'não-monotônica' (consensos são descartados e depois recuperados para novamente ser descartados... vide o debate em torno da crise atual).

    Uma vez que atentamos para esse fato, a exigência de consistência somente seria aceitável no caso de uma ciência metodológica, em que esta compõe o critério natural de seleção de teorias (validade lógica e consistência interna). Como economia é uma ciência objetiva (e social), este não pode ser um critério separador de boa e má teoria.

    ResponderExcluir
  8. "um elemento central do seu discurso, ao clamar para que qualquer nova produção científica seja consistente com o que se produziu até aqui, é a crença de que estamos nos aproximando cada vez mais de uma suposta verdade objetiva."

    Não...como eu mesmo disse no texto, não espero que esse critério nos levará a verdade, pelo contrário, o mais provável é que ele não nos leve a verdade (existe uma sensibilidade grande do critério que eu enunciei às crenças iniciais). Mas o critério de consistência no texto é uma simples derivação de: devemos usar o máximo de informação possível...nos termos dos estatísticos, é uma derivação bayesiana, não clássica...o axioma não é de proximidade da verdade (e na verdade, foi isso que eu tentei passar com o texto). O axioma que eu coloquei é de que usar mais informação é melhor que usar menos informação. A qualificação da informação (que a impede de ser indistinguível do método) se dá pelas priors que temos, que são ad hoc, mas são priors (vale citar, a prior pode ser completamente não informativa - ter densidade 1 em todo ponto - e ainda assim, com algumas condições, as coisas podem dar certo).

    De novo, o uso de toda a informação disponível é perfeitamente coerente com consensos científicos se justapondo e indo embora de forma não monotônica, tudo depende da nova informação ser mais favorável/mais desfavorável ao consenso atual (de novo, como você mesmo citou, vide crise).

    Por fim, não entendi a tua distinção entre ciência metodológica e ciência objetiva.

    Abs.

    ResponderExcluir
  9. Uma outra coisa que eu esqueci...todo o meu ponto depende de não termos uma prior que atribui probabilidade 0 à algum evento. Isso me parece um critério de não arrogância bem razoável e bem pouco restritivo...

    ResponderExcluir

Caso você tenha interesse em enviar um texto para publicação neste Blog, por gentileza, envie para o e-mail do Blogger, para que possa ser avaliado.