Assisti, há pouco tempo, um debate sobre o Estatuto da Igualdade Racial no Instituto Casa das Garças entre os professores Demétrio Magnoli e Jorge da Silva (o Espectro Econômico também está com um comentário sobre o debate...os caras lá foram mais rápidos em comentar o debate).
O debate apresentou argumentos fortes a favor e contra o estatuto. Resumindo o debate, de um lado, Magnoli argumentou que a cultura brasileira é uma cultura da miscigenação racial (e de forma mais geral, da mistura das origens européia, africana, japonesa e indígena). Sendo assim, a idéia de aprovar estatutos da igualdade racial, legislando sobre políticas para negros seria criar na cultura brasileira um fenômeno de direção de políticas públicas e comportamentos sociais baseados na diferença de raças, ou seja, criar na sociedade brasileira um tipo de discriminação que não existe. Por outro lado, da Silva (com complementos de alguns outros participantes na platéia) replicou: existe preconceito contra negros no Brasil, independente de a cultura ser miscigenada ou não. Alguma coisa deve ser feita contra isso, e por mais que imperfeito, o estatuto é uma tentativa de diminuir os efeitos perversos do preconceito contra os negros.
Agora, vale notar, em primeiro lugar, que a tese do professor Magnoli rui se existe algum tipo de discriminação além daquela decorrente da desigualdade de oportunidades: se negros são tratados de forma diferente de brancos simplesmente por raça, e não por educação/renda/qualquer outro motivo econômico, isso significa que a cultura popular, de alguma forma e em alguns momentos, reconhece a existência de raças não miscigenadas, e daí, a lei não está introduzindo na sociedade nenhum conceito que nela não existe. As evidências disso são infindáveis: Marcos A. Rangel, economista da USP/Chicago, tem trabalhos mostrando que pais que têm um filho negro e outro branco investem menos na educação do filho negro por esperarem maior preconceito contra ele, e que um aluno negro com background parecido com o de um aluno branco (e na mesma sala de aula) tenderá a receber uma nota pior de um mesmo professor (isso tudo no Brasil, caso vocês ainda tenham alguma sombra de dúvida). Mais ainda, o próprio surgimento, ainda incipiente, de associações de defesa de interesses de negros é evidência de que a cultura de separação de raças está aparecendo, apesar de ainda não ser algo tão claro e impregnado nas nossas mentalidades. A idéia de raça já existe, e é em decorrência da existência dela que existem demandas políticas pelo Estatuto da Igualdade Racial.
Por outro lado, os argumentos do professor Jorge da Silva não validam o estatuto. O estatuto define políticas de igualdade de acesso à saúde/educação/liberdade de crença para os negros. Em primeiro lugar, por mais que exista preconceito contra negros, a criação de um estatuto implantado na lei brasileira definindo políticas com foco nos negros é uma forma de fortalecer a união em torno de uma causa. Em outras palavras, é uma forma de o Estado patrocinar a criação de uma organização política com ideais específicos. Sem esse patrocínio do Estado, potencialmente, as associações que apareceriam seriam outras. Com esse patrocínio, as primeiras e pequenas associações de defesas de interesses de negros ganham maior apoio político, apoio que elas não teriam sem o patrocínio estatal.
Um dos grandes papéis da democracia é, com certeza, facilitar a associação livre das pessoas em torno das causas que elas desejam apoiar. Outra certeza é que não é papel de um Estado democrático dizer quais são as causas que as pessoas devam apoiar. Imaginem o Estado aprovando uma lei dizendo: "os exportadores foram muito prejudicados com a queda do câmbio. Sendo assim, os exportadores passam a ter um Estatuto de Igualdade dos Exportadores, sendo papel do Estado garantir acesso dos exportadores aos mercados de trabalho, aos portos, ...". Substitua exportadores por negros, queda do câmbio por escravidão e pobreza, e mercados de trabalho e portos por saúde pública e liberdade de crenças em religiões africanas. Eis o Estatuto de Igualdade Racial. É o Estado brasileiro implicitamente dizendo qual é a causa que os negros devem apoiar, assim como o Estado brasileiro fez na década de 40-50 com as leis de sindicatos, dizendo o que os trabalhadores deveriam apoiar. O primeiro motivo para ser contra o estatuto é porque ele é uma violação da democracia.
Por fim, qual é a alternativa ao estatuto da igualdade racial na luta contra a discriminação? Em primeiro lugar, a alternativa é um Estatuto da Igualdade, que defende acesso à saúde e à liberdade de crenças por todos, independentemente de raça (ponto já defendido pelo professor Jorge da Silva). Em segundo lugar, a forma de compensar os negros pela desigualdade de oportunidades que eles enfrentam é dar melhores escolas e incentivar competitividade nos mercados (de forma a diminuir o preconceito no mercado de trabalho). Por fim, a forma de reduzir o preconceito enfrentado pelos negros é criar políticas de integração social (por exemplo, levar crianças de escolas públicas/crianças negras para interagir com alunos de escolas privadas); ou aumentar a mobilidade locacional/social (de forma que as pessoas possam escolher com que grupo querem estar, algo que pode ser importante se as pessoas estiverem cortando as próprias pernas como sinal de comprometimento com o seu grupo original). Políticas de integração social são comuns nos E.U.A., Europa, Israel, e países com muitos imigrantes (em Israel, que recebeu muitos imigrantes do leste europeu, da Rússia e da Etiópia, com bastante sucesso). Não sei porque essas não seriam alternativas viáveis ao estatuto. De qualquer forma, não acredito que o Estatuto fará muita diferença.
Apesar de todas as críticas, o debate na Casa das Garças foi bom.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Caso você tenha interesse em enviar um texto para publicação neste Blog, por gentileza, envie para o e-mail do Blogger, para que possa ser avaliado.