domingo, 1 de novembro de 2009

Saúde pública ou privada? (respondendo aos debates que eu vi no Brasil com relação à reforma americana)

A criação de um sistema público de saúde, com acesso universal, foi uma das propostas mais controversas do governo de Obama. Alguns amigos meus (brasileiros) criticam: criar um sistema de saúde público nos EUA não é lutar por acesso universal, é trazer filas de espera em hospitais, atendimento precário e os problemas que nós, como brasileiros, estamos acostumados a ver no nosso sistema de saúde público de acesso "universal". As teorias que apoiam essas críticas dos meus amigos são inúmeras - pessoas que tem acesso grátis à saúde vão usar o sistema sem se preocupar com os custos que elas geram, governos/empregados públicos são ineficientes em administrar sistemas públicos, entre outras.

O que os meus amigos não perceberam, porém, é que os americanos não tem como parâmetro de comparação o sistema brasileiro de saúde, mas sim, os sistemas europeus (em particular, o inglês). Na Europa, muitos países tem sistemas de saúde públicos com acesso universal e com bom atendimento. O que garante que os EUA terão o sistema de saúde público europeu, e não o brasileiro? Para isso, precisaremos responder: O que permite que os europeus (em particular, os ingleses) tenham bons sistemas de saúde públicos, enquanto que a gente não os tem?

Em primeiro lugar, o sistema de saúde inglês tem uma tecnologia, por assim dizer, de impedir o sobreuso do sistema de saúde (pessoas utilizando o sistema de saúde sem perceber o impacto que elas têm sobre os custos desse sistema). Com o aparecimento de um novo tratamento para uma nova doença, consultores da agência administradora do sistema de saúde inglês procuram saber: quantos anos de vida a mais o tratamento dá ao paciente? Durante esse tempo a mais de vida, o paciente tem boa ou má qualidade de vida? A isso, se associa estudos sobre (i) "quantos anos de vida saudável equivalem à 5 anos de vida doente para o paciente médio na Inglaterra?" e (ii) "qual é o valor monetário que as pessoas dão à um ano a mais de vida saudável?" (para esse último, o que se faz, em geral, é olhar para o salário que as pessoas têm que receber para aceitar empregos com maior risco de vida, se pode inferir, de alguma forma, o quanto as pessoas valorizam a própria vida). Desses dois tipos de estudo, se calcula o quantos anos de vida a mais (ajustados por qualidade de vida) o tratamento dá (medida conhecida como "QALY") e o quanto as pessoas estão dispostas a pagar por um QALY a mais. Em média, os estudos indicam que as pessoas pagariam cerca de 25 mil dólares por um QALY de vida a mais (ou seja, por um ano de vida saudável a mais). O sistema de saúde público inglês, em decorrência desses estudos, só oferece tratamentos que custem menos que 40 mil dólares por QALY oferecido (para dar alguma margem de confiança). Isso reduz o espaço para o oferecimento de tratamentos de saúde cujo custo é maior que a valorização que as pessoas dão ao tratamento. Apesar dos erros de mensuração dessas metodologias, isso é o melhor que se pode fazer em termos de saúde pública. Para uma discussão mais detalhada, recomendo esse texto (infelizmente, de acesso limitado). Na Alemanha, o sistema de saúde dá direito a uma consulta anual para cada cidadão com fins preventivos, e o não aproveitamento das consultas para detecção de doenças em estágios iniciais pode limitar o acesso à saúde da pessoa. Um fato conhecido é que tratamento de doenças em estágios iniciais e tratamentos preventivos é muito mais barato que o tratamento para curar doenças.

Um segundo ponto é que, independentemente de corrupção, alguns governos são mais eficientes em prover serviços (entre eles, o de saúde) que outros governos. Nos lugares mais eficientes, existe menos burocracia governamental, melhores instituições de governança, e tudo isso permite que se gaste menos com burocratas e mais com oferecimento de leitos hospitalares/equipamento e remédios para tratamentos de saúde.

O que garante que os EUA devem comparar a sua situação à européia, e não à brasileira, é que, em primeiro lugar, o governo americano e muitos governos europeus são muito mais eficientes que o governo brasileiro em prover bens públicos (e a eficiência do governo americano e desses governos europeus são semelhantes). São provas disso o fato de que os EUA são o 18o. no ranking de países percebidos como menos corruptos; a Inglaterra, 16o.; a França, 23o.; a Suiça, 5o.; a Alemanha o 14o. e o Brasil, 80o. (números do Transparency International 2008). Olhando-se para efetividade do governo, os EUA e os países europeus citados estão entre os 10% com mais efetividade de governo no mundo, enquanto que o Brasil ocupa o percentil 54.5. O mesmo exercício pode ser feito com diversos indicadores que mostram capacidade do governo em prover serviços, todos com resultados parecidos (uma página com os rankings é essa). Em segundo lugar, os sistemas de saúde públicos europeus, como mostrado anteriormente, desenvolveram diversas regras (que nós brasileiros não desenvolvemos) para evitar sobreuso do sistema de saúde público e melhorar a capacidade de ofertar saúde pública. Essas regras curam exatamente um dos maiores problemas do sistema americano (ele é excessivamente caro), e as regras aqui descritas foram, em parte, o que se tentou implementar nos EUA na proposta do Obama. Me parece claro que, com um governo ordens de magnitude mais eficiente em prover serviços públicos e com regras que permitem baratear a provisão dos serviços de saúde (regras essas coerentes com os gostos das pessoas), o problema de um sistema de saúde público americano não será o problema de filas e incapacidade de provisão que o sistema brasileiro enfrenta.

A pergunta natural é: quais são, então, os potenciais problemas que um sistema público americano pode enfrentar? Em primeiro lugar, os EUA são o maior produtor de tecnologia de saúde no mundo, e muitos estudos indicam que isso tenha a ver com a organização do setor de saúde americano. Diminuir a possibilidade de oferta de tratamentos caros, naturalmente, aumenta o custo de desenvolvimento tecnológico de tratamentos de saúde (os avanços tecnológicos passam a ter que ser maiores para serem adotados), e por isso, podem reduzir o ritmo de desenvolvimento de tratamentos para doenças ainda não tratáveis. Ainda mais, o sistema de saúde nos EUA possui o melhor sistema de saúde para tratamento de doenças raras, algo que pode deixar de ser verdade com a adoção das regras européias.

Colocando de outra forma: a questão do sistema de saúde americano é uma questão redistribuitiva. É melhor desenhar um sistema de saúde que tem acesso universal, atende bem doenças médias mas não tão bem doenças raras, ou um sistema de saúde sem acesso universal, que, porém, garante que quem tiver acesso sobreviverá a qualquer mal que lhe atacar? Não sei a resposta, mas sei que, nessa questão, não vale citar o trade-off equidade-eficiência que alguns economistas tanto gostam de frisar: a ocorrência de muitas doenças, por natureza, têm externalidades (esse é o caso de doenças transmissíveis). Principalmente no caso de doenças "muito transmissíveis", a solução que provê igualdade de tratamento diminui as externalidades de um tratamento desigual, fazendo eficiencia crescer com igualdade.

7 comentários:

  1. Gostei bastante do texto, Michel.
    Tenho tentado ler sobre isso, mas é um assunto que acho muito chato, pra dizer a verdade. Eu sei que vc deve estar sem tempo, mas acho que se vc conseguisse fazer uma analise de algumas das propostas (ou comparacao entre Canada, França, Reino Unido etc.)seria bastante interessante, já que o grande problema para aprovação dessa reforma na saúde lá é conciliar contenção de custos e universalização (diria tb que a qualidade do sistema tb entra nessa equação, como vc disse). Acho a expressão "you can't eat your cake and have it too" muito boa para o caso. E vc mostrou como países como o Reino Unido e Alemanha lidam com isso. Não existe solução perfeita e todas as propostas tem um lado negativo e cabem a eles escolherem o que para eles é o menos pior. Mas minha dúvida maior é quanto dessa contenção de custos poderia vir simplesmente através de maior estímulo da competição nesse setor por parte do governo ou simplesmente haver uma mudança de regras, ao invés de participação direta e subsídios do governo. Ou seja, requeriria um comprometimento e gasto menor do governo que talvez fosse difícil reverter no futuro caso os resultados não fossem satisfatórios. Eu sei que alguma participação direta o governo terá que ter, mas será que tem que ser tanto quanto estão propondo e tão de cara assim sem tentar outras opções menos custosas?
    Não tenho resposta para isso por mais que já tenha lido sobre o assunto e, portanto, passo pra vc!
    Abs

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  2. Uma coluna que li recentemente que fala um pouco sobre isso: http://www.newyorker.com/online/blogs/johncassidy/2009/11/some-vaguely-heretical-thoughts-on-health-care-reform.html#entry-more

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  3. Ricardo, vou tentar escrever melhor alguma coisa no sentido do que você propôs. Só estou meio sem tempo agora para pesquisar de forma mais ampla esses sistemas de saúde, para apresentar um texto comparativo amplo o suficiente (tipo...uns 5-10 países)....

    Obrigado pelas sugestões

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  4. hola! Eu realmente gostei deste blog

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  5. Obrigado, continue visitando.
    Abs
    Michel

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  6. saúde está interessado em tudo isso é público ou privado, para melhorar a qualidade de vida de que é graças de todos.

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  7. Propecia and hair loss: realmente não entendi o seu comentário...

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